Não tenho pena do poema, de Reynaldo Bessa




a melhor forma de matar o tempo

Por Beatriz Bajo*

do meio da  fila  indiana  formada  pelas  reticências que visitam as línguas, irrompem versos que rugem. incisivos como uma fera faminta atrás de sua presa, alvoroçando a floresta-linguagem com suas patas-palavras afiadas na jugular do poema.
masculina. aguda. atrevida, a voz não tem pena do poema porque o trata também como impiedoso. e ímpio para ela pode ser o  trabalho  rascante  do  artista (mais invisível do que seu olhar oblíquo):

volto (volto?) sob o pó do cansaço, encharcado
de noites e
com os dedos trêmulos ainda tentando segurar
a alça de um ataúde
que há pouco desapareceu no escuro que nunca
morre. (44)

, a vida:

dentro
da velha companheira
caneta bic,
uma dor líquida
cor azul-infância. (11)

ou a fêmea

sinto por você o que o amor ainda desconhece (36)

, numa luta corporal em que cada um perde um pouco de si, sangue derramado sobre o tempo a galope que escoiceia os anos descompassados como uma espada que atravessa o pescoço de uma criança desavisada dos prazos de validade.
Reynaldo  Bessa,  depois  de Outros Barulhos  - Poemas e Algarobas Urbanas, reaparece como um serial killer, sujo da graxa da vida, manchado de humanidade, esbaforido por nadar contra a maré dos instantes...munido com verbos apimentados.
não há piedade na poesia besseana porque seu maior inimigo está no espelho e tem a medida exata de sua força, a estatura de todos os seus medos e usa da mesma faca tantas vezes amolada no porão de si - arma branquíssima aos silêncios desafiadores.
o poeta atira versos, atiça a fogueira dos encontros, levanta as saias das meninas que dormem nas suas mulheres, sacode a rua como um moleque deslumbrado com sóis escondidos e assim engatilha um livro de alto calibre:

apenas quero ser arrebatado
como o serial killer que no fundo mata
para, enfim! ser preso (47)

enfim! a presa é o leitor que desenvolve depois da leitura de Não tenho pena do poema a Síndrome de Estocolmo, em que a ameaça transforma-se em prazeroso sequestro do tempo morto para o êxtase renascido por dentro da literatura, espelho do mundo que não morre mais.


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*Beatriz Bajo é poeta, editora-geral da Rubra Cartoneira Editorial, revisora, tradutora, professora de língua portuguesa e literatura, especialista em Literatura Brasileira (UERJ). Seus livros são a face do fogo (SP, 2010), : a palavra é (PR, 2010) e domingos em nós (PR, 2012).  Mantém o blogue Linda Graal (http://lindagraal.blogspot.com/).

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